quarta-feira, 22 de abril de 2015

O Fazer Simbólico da Psique - A Terapia de Sand Play

O Fazer Simbólico da Psique - A Terapia de Sand Play



A Terapia do Sandplay é um método psicoterapêutico baseado no trabalho prático, criativo, não racional, que atinge um nível pré-verbal da psique. Os pacientes – adultos e crianças, criam cenas tridimensionais ou desenhos utilizando uma caixa com areia, água e um grande número de miniaturas. O método, utilizado para a objetivação dos conteúdos imagéticos, nos fornece um quadro da psique num dado momento e espaço.
O ato de visualizar e traduzir emoção em imagem através do uso da areia vem sendo utilizado desde os primeiros estágios da consciência humana, como podemos observar em alguns rituais xamânicos navajos e tibetanos. Por isso não é de surpreender que os psicoterapeutas, como os xamãs da modernidade, estejam resgatando o trabalho na areia como um método terapêutico.
A terapia do Sandplay foi criada no final dos anos 50 por Dora M. Kalff, terapeuta suíça que recebeu orientação de Emma e C. G. Jung. Esta abordagem tem o embasamento dos pressupostos teóricos junguianos enfatizando a qualidade espontânea e dinâmica da própria experiência criativa – a essência do método esta em ser não verbal e simbólica.

A associação de um espaço delimitado (a caixa) com matéria (areia) e objetos favorece o nascimento da representação de conteúdos profundos; oferecendo assim, indicações das relações existentes entre o complexo do ego e as dinâmicas ativas inconscientes. Desta forma, podemos dizer que a cena produzida na areia é uma maneira não-verbal de tornar visível a trama emotiva que ainda não encontra possibilidade de ser dita naquele momento; uma maneira de sair dos meios habituais de defesa tentando dar forma a uma perturbação, assim como de observar a ativação da energia criativa e curadora.
No que Kalff chamou de “espaço livre e protegido”, o papel do terapeuta durante o processo é o de observador, de testemunha da criação que reverbera empaticamente. Por isso, além de ter conhecimento e consciência do mundo externo e simbólico e do paciente, é imprescindível que o terapeuta tenha, ele próprio experienciado seu processo de Sandplay em todas as suas fases.
O trabalho proporciona um microcosmo onde o indivíduo pode re-experienciar estados pré-verbais e não verbais, aprender a interagir com o meio e treinar para as situações da vida real.
Karen Signall, seguidora de Kalff, coloca que a Terapia de Sandplay proporciona: licença com restrição, liberdade com estrutura, fantasia com segurança e espontaneidade aliada à forma e significado.
 Margareth Lury é professora do IJEP e atualmente está com um curso de extensão em Sand Play

O Conto “A Bela e a Fera”: da simbologia alquímica ao processo de individuação - Parte 3

              O Conto “A Bela e a Fera”: da simbologia alquímica ao processo de individuação - Parte 3



             O impulso de retorno à mãe pode ser visto como um impulso de volta ao inconsciente. Sob certas circunstâncias, isso pode ser regressivo, levando à neurose e à psicose; doença psicológica ou morte. Em outras circunstâncias, ou seja, no processo de individuação, a regressão pode ser temporária e em prol da renovação psicológica e do renascimento simbólico (“recuar para saltar melhor”).

              Sobre a regressão e o processo de cura, Jung diz: “Parece que o processo de cura mobiliza essas forças para alcançar os seus objetivos. É que as representações míticas, com seu simbolismo característico, atingem as profundezas da alma humana, os subterrâneos da história, aonde a razão, a vontade e a boa intenção nunca chegam. Isso porque elas também provêm daquelas profundezas e falam uma linguagem, que, na verdade, a razão contemporânea não entende, mas mobilizam e põem a vibrar no íntimo do homem. A regressão que poderia assustar-nos à primeira vista é, portanto, muito mais um “reculer pour mieux sauter”, um concentrar e integrar forças, que no decorrer da evolução vão constituir uma nova ordem.” (Jung, C.G. , 2007, p. 13).
       
               Deste modo, na visão junguiana a função do símbolo é ser um agente curativo que age como ponte para reconciliar os opostos, ou seja, uma tentativa do inconsciente de levar a libido regressiva para um ato criativo, mostrando assim o caminho para a solução do conflito. Assim, Jung nos fala da importância do conhecimento dos símbolos em análise, uma vez que a meta da psicoterapia não se resume a cessão dos sintomas, mas a realização plena das potencialidades a partir do processo de individuação. “[...].

              Neste caso o conhecimento dos símbolos é indispensável, pois é nestes que se dá a união de conteúdos consciente e inconsciente. Da união emergem novas situação ou estados de consciência. Designei por isso a união de opostos pelo termo “função transcendente”. A meta de uma psicoterapia que não se contente apenas com a cura dos sintomas é a de conduzir a personalidade a totalidade.” (JUNG, 2006, p. 282)

             Bela retorna ao lar transformada, e isso atiça a inveja de suas irmãs. Esse momento do conto representa o confronto com a sombra e aos aspectos regressivos do inconsciente, que dificultam a comunicação do ego com o Self e obstrui o processo de individuação. As irmãs de Bela, ardilosamente, fazem tudo para agradá-la e para que esqueça de retornar ao castelo da Fera. Porém, Bela pressente o chamado da Fera, e ao voltar depara-se com a Fera agonizando de tristeza (operação mortificatio, na alquimia). A partir desse momento, Bela percebe o lado humano da Fera, assim como o sentimento de amor. Desse modo, a heroína tem a vivência da coniunctio, a vivência dos opostos, visto que a Fera não é mais um animal repugnante, mas como um ser humano (pois tem sentimento) que desperta seu amor.



             “De acordo com o simbolismo alquímico, a coniunctio é o objetivo do processo; é a entidade, a matéria, a substância que é criada pelo processo alquímico quando ele finalmente obtém sucesso em unir os opostos. É algo misterioso, transcendente, que pode ser expresso por muita imagens simbólicas. [...]” (EDINGER, 2008, p. 21).

              Em JUNG (2003), “[...].A operação alquímica consistia essencialmente numa separação da prima matéria do assim chamado caos, no princípio ativo, isto é, a alma, e no princípio passivo, isto é, o corpo, os quais posteriormente se reunificavam sob a forma personificada da “coniunctio”, do “matrimonium chymicum”; em outras palavras a “coniunctio” era vista como uma alegoria do hierosgamos, a união ritual de Sol e Lua. Dessa união nascia o filius sapientiae, o philosophorum: O Mercurius transformado, considerado como hermafrodita, devido à forma esférica de sua completude.”(JUNG, 2003, p. 125)

              A partir da vivência dos opostos, o animus animalesco, sombrio, torna-se humano. Assim, o feitiço que condenou o príncipe a viver como Fera é quebrado e este pede Bela em casamento. O casamento é um símbolo muito recorrente nos contos de fadas e mitos que retratam a saga de heroínas. Nos mitologemas do herói há uma cisão entre inconsciente e consciente. O herói mata o monstro, representando essa cisão e, principalmente a construção do ego “herói” que se diferencia do monstro “inconsciente”. Já nos contos de heroína, diferentemente nos de herói, podemos observar que o princípio feminino faz parte do aspecto do inconsciente e, por tanto lida com ele na esfera da relação e não da cisão.

               Daí, o casamento ser o símbolo perfeito para retratar a meta final do processo de individuação, da relação entre os opostos, como nos fala Boechat (2008), “O modelo mítico mostra sempre o mitologema do herói que mata o monstro. Este mitologema configura a estruturação da consciência a partir do inconsciente. A morte do monstro simboliza o domínio ou repressão de impulsos instintivos primitivos. Configura-se aqui a oposição instinto-cultura definida por Freud. Entretanto, há mitos de epopéias personificadas por heroínas. Estas normalmente não matam o monstro, mas, ao contrário, casam-se com ele.

               O conto de fadas A Bela e a Fera ilustra bem esta situação, também configurada no Mito de Eros e Psique. (...). É provável que a heroína, como mulher, personifique uma possibilidade da tão buscada coniunctio oppositorum alquímica, a união dos opostos, a última e mais difícil das operações, pois representa a união do inconsciente e do consciente, objetivo final do processo de individuação. A heroína estrutura a consciência pois perfaz o ato heróico; ao mesmo tempo, seus valores são do inconsciente, pois pertence ao domínio do feminino, da emoção” (BOECHAT,W., 2008, p. 67-68).


 Bibliografia
BEAUMONT, Jeanne-Marie Le Prince de. A Bela e a Fera. In: Fábulas Encantadas. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1982.
BOECHAT, W. A Mitopoese da Psique- Mito e Individuação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008
CHEVALIER, J., GLEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998. DIECKMANN, H. Contos de Fada Vividos. São Paulo: Edições Paulinas, 1986
EDINGER, E. O Mistério da Coniunctio. Imagem Alquímica da Individuação. São Paulo: Paulus, 2008. ESTÉS, C. P. Mulheres que Correm com os Lobos – Mitos e Histórias do Arquétipo da Mulher Selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
JACOBI, J. Complexo Arquétipo Símbolo na Psicologia de C. G. Jung. São Paulo: Cultrix, 1995.
JUNG, C. G. A Prática da Psicoterapia. Obras Completas vol. XVI – Petrópolis: Vozes, 2007. ______ Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Obras Completas vol. IX/1 – Petrópolis: Vozes, 2006. ______ Estudos Alquímicos. Obras Completas vol. XIII– Petrópolis: Vozes, 2003. ______ Psicologia e Alquimia. Obras Completas vol. XII – Petrópolis: Vozes, 1991.
JUNG, E. Animus e Anima. São Paulo: Cultrix, 2005.
LEONARD, L.S. A Mulher Ferida: em Busca de um Relacionamento Responsável entre Homem e Mulher. São Paulo: Summus, 1997.
VON FRANZ, M-L. Reflexos da Alma – Projeção e Recolhimento Interior na Psicologia de C. G. Jung. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1992. ______ O Feminino nos Contos de Fadas. Petrópolis: Vozes, 1995. ______ A Interpretação dos Contos de Fada. São Paulo: Paulus, 1990.
WOOLGER, J.B. e WOOLGER, R. J. A Deusa Interior: Um Guia sobre os Eternos Mitos Femininos que Moldam nossas Vidas. São Paulo: Cultrix, 1987.
WIKIPEDIA A Bela e a Fera. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Bela_e_a_Fera. Acesso em: 15 de dezembro de 2009.

Autora: Gabriella Gomes Cortes. Psicóloga graduada pela UFRJ. Pós- graduanda em Psicologia Analítica pelo IBMR. Psicóloga da Prefeitura de Niterói (SMAS)

O Conto “A Bela e a Fera”: da simbologia alquímica ao processo de individuação - Parte 2

       O Conto “A Bela e a Fera”: da simbologia alquímica ao processo de individuação - Parte 2


 A Bela e A Fera (La belle et la bête - 2014)

                  No conto A Bela e a Fera podemos perceber muitos paralelos com a simbologia alquímica, que Jung concebe como uma alegoria do processo de individuação. O conto tem início com a ruína do pai de Bela, uma vez que este perde toda sua fortuna num negócio mal sucedido. Daí a partir desse fracasso, Bela, diferentemente de suas irmãs, se compadece do pai, abdicando de sua vida para ajudá-lo, recusando de todas as propostas de casamento que lhe foram oferecidas. Suas irmãs invejam-na, pois mesmo sem dote, permanecia sendo cortejada e admirada pelos rapazes, o que não aconteciam com aquelas.

            Nesse primeiro momento do conto, percebemos que Bela é como um ego indiferenciado, uma vez que vive num estado de simbiose com seu pai, o que pode representar, metaforicamente, um estado de caos, de inconsciência. O processo de diferenciação se dá a partir do momento em que o pai de Bela parte em viagem, em busca de reaver sua riqueza. O interessante é que antes de partir, oferece um presente cada uma das filhas e enquanto as irmãs pedem bens materiais (jóia e vestido), Bela pede apenas uma rosa.

           O simbolismo da rosa é extremamente rico, visto que a rosa esta associada aos mistérios de Isis, como também ao culto da deusa Afrodite (ou Vênus). Além, disso a rosa, como as demais flores, por terem formato circular, representam a totalidade, o Self e a busca pela perfeição através do processo de individuação. Segundo Jung (2006), a rosa, em geral, dispostas em quatro raios, o que indica a quadratura de um círculo, representando assim a união dos opostos, simboliza a totalidade.



            Sobre os símbolos da totalidade, Jung estudou as mandalas das religiões orientais. “Mandala”, em sânscrito, significa círculo e designa os desenhos circulares utilizados em rituais de contemplação. “A meta da contemplação dos processos representados na mandala é que o iogue perceba (interiormente) o deus, isto é, pela contemplação ele se reconhece a si mesmo como deus, retornando assim a ilusão da existência individual à totalidade universal do estado divino.”(JUNG, 2006, p. 353)

           Edinger (2008), fala sobre o aspecto teleológico das flores, que é de atrair através da beleza e de seu símbolo como uma isca para ego na busca da perfeição através do processo de individuação. “Eu penso que as flores são, primeiramente, uma referência ao aspecto erótico da energia motivadora. Nos sonhos, as flores geralmente apontam para duas idéias principais: quando uma flor única é enfatizada, com muita freqüência indica uma imagem mandálica, já que flores são mandalas naturais. A outra idéia é a de que flores representam a capacidade natural de atrair. Elas são representações da beleza, uma isca. Provavelmente, do ponto de vista teleológico, é para isso que uma planta gera flores. Elas atraem criaturas que servem aos seus propósitos. Assim, consideradas psicologicamente, as flores representariam a isca de beleza que o inconsciente estende para o ego, para atraí-lo ao processo de individuação”(EDINGER, E. 2008, p.60-62)

            As flores também representam o elixir da vida, uma vez que a floração exprime o retorno ao centro, à unidade, ao estado primordial. Por isso, muitas vezes são consideradas a representação da alma, o centro espiritual: “Associadas analogamente às borboletas, tal como elas, as flores representam as almas dos mortos. [...] Com efeito, muitas vezes a flor apresenta-se como figura-arqúetipo da alma, como centro espiritual.” (Chevalier, J., 1998, p. 438-439) No conto em questão, a rosa é o elemento instigador de todo o drama que se seguirá, pois é a partir de seu roubo se dará toda a transformação da personagem principal. Assim como, a mordida da maçã do jardim do Éden, o roubo da rosa é o ato transgressor que traz luz ao desconhecido, uma vez que produz consciência e promove a transformação.


              Ao roubar a rosa de um castelo desconhecido, o pai de Bela se depara com a Fera que o condena a morte por seu ato. Porém, diante das súplicas do pobre homem, a Fera poupa-lhe a vida com a condição que uma de suas filhas fosse morar em seu castelo. Retornando ao lar, o pai entristecido conta o ocorrido, e Bela se oferece para morar com a Fera. Nesse momento, ocorre a separação da heroína com seu núcleo familiar. Vale ressaltar que o tema da separação é muito freqüente nos mitos de criação, nas sagas heróicas. Segundo Edinger (2008) a separação (operação separatio, na alquimia) corresponde ao ato inicial de criação, que cinde a luz das trevas.


              Como no mito da criação cristão, no começo havia apenas caos e a partir da intervenção divina, houve uma cisão, separando a terra do céu. Alegoricamente, essa separação corresponde ao nascimento da consciência, o nascimento do ego – o que no conto corresponde a ida da heroína ao castelo da Fera. A partir do roubo da rosa, tem início a difícil missão da heroína que é viver num novo mundo e conviver com a Fera. Essa difícil missão é o anúncio da opus alquímica, o prenúncio da transformação. A Fera é a representação de num animus animalesco, regredido e, até mesmo, negligenciado, pois vive só em seu castelo.

             O encontro de Bela e a Fera seria assim uma alegoria do contato entre ego-animus. Ao entrar em contato com Fera, uma criatura repugnante, Bela sente medo, mas com o passar do tempo é construído um vínculo entre os dois personagens. Como prova de confiança, a Fera deixa Bela visitar sua família. O retorno ao lar de Bela, representa a regressão do ego diferenciado ao inconsciente original, o que se assemelha a operação alquímica solutio.

             “Para o alquimista, a solutio significava o retorno da matéria diferenciada ao estado original indiferenciado, prima matéria. A água era vista como útero, e entrar na água, a solutio, era retornar ao útero para renascer.”(EDINGER, E. 2008, p. 66) Jung sugere em sua teoria uma relação simbólica entre a mãe e o inconsciente, pois, como a mãe é fonte da vida física, também o inconsciente é a fonte da vida psicológica. Portanto, a mãe e o inconsciente podem ser vistos como símbolos femininos equivalentes.

      Autora: Gabriella Gomes Cortes. Psicóloga graduada pela UFRJ. Pós- graduanda em Psicologia Analítica pelo IBMR. Psicóloga da Prefeitura de Niterói (SMAS)   

O Conto “A Bela e a Fera”: da simbologia alquímica ao processo de individuação - Parte 1

                  O Conto “A Bela e a Fera”: da simbologia alquímica ao processo de individuação
                   
A Bela almoçando com a Fera em uma ilustração de Anne Anderson.

 Resumo: O presente artigo tem por objetivo abordar o caráter transformador do arquétipo de animus e o processo de integração deste em paralelo ao processo de individuação, a partir do conto A Bela e a Fera, que nos mostra a metamorfose do noivo-animal em príncipe. Com relação ao processo de individuação, analisamos o símbolo do casamento presente em vários contos de fada, como símbolo alquímico do processo, representando a união dos opostos, representação da meta psíquica pela totalidade.

Palavras-chave: arquétipo de animus, símbolo, processo de individuação, coniunctio

A Bela e a Fera (A Bela e o Monstro em Portugal) é um tradicional conto de fada francês. Em francês La Belle et la Bête, a primeira versão do conto foi publicado por Gabrielle-Suzanne Barbot, Dama de Villeneuve em La Jeune Ameriquaine et les Contes Marins, em 1740. (WIKIPEDIA, 2009).

A versão mais conhecida foi um resumo da obra de Madame Villeneuve, publicado em 1756 por Madame Jeanne-Marie LePrince de Beaumont, no Magasin des enfants, ou dialogues entre une sage gouvernante et plusieurs de ses élèves. A primeira versão inglesa surgiu em 1757. (op. cit.)

            Resumidamente, o conto "A Bela e a Fera" relata a história da filha mais nova de um rico mercador, que tinha seis filhos: três homens e três mulheres. Enquanto as filhas mais velhas gostavam de ostentar luxo, de festas e lindos vestidos, a mais nova, que todos chamavam Bela, era humilde, gentil, generosa e tratava bem as pessoas.

           Certo dia, o mercador perdeu toda a sua fortuna, com exceção de uma pequena casa distante da cidade. Bela e seus irmãos aceitaram a situação com dignidade, mas as duas filhas mais velhas não se conformavam em perder a fortuna e os admiradores, e descontavam suas frustrações sobre Bela, que humildemente não reclamava e ajudava seu pai como podia.

            Um dia, o mercador recebeu notícias de bons negócios na cidade, e resolveu partir. As duas filhas mais velhas, esperançosas em enriquecer novamente, encomendaram-lhe vestidos e futilidades, mas Bela, preocupada com o pai, pediu apenas que ele lhe trouxesse uma rosa. Quando o mercador voltava para casa, foi surpreendido por uma tempestade, e se abrigou em um castelo que avistou no caminho.

           Ao partir, pela manhã, avistou um jardim de rosas e, lembrando do pedido de Bela, colheu uma delas para levar consigo. Foi surpreendido, porém, pelo dono da roseira, uma Fera pavorosa, que lhe impôs uma condição para viver: deveria trazer uma de suas filhas para ficar em seu lugar.

           Ao chegar em casa, Bela, mediante a situação resolveu se oferecer para a Fera, imaginando que esta a devoraria. Porém, ao invés de a devorar, a Fera mostrou-se aos poucos como um ser sensível e amável, fazendo todas as suas vontades e tratando-a como uma princesa. Assim, apesar de achá-lo monstruoso, Bela se apegou a Fera. Certa vez, Bela pediu que a Fera a deixasse visitar sua família, pedido que foi concedido, a muito contragosto, com a promessa de ela retornar em uma semana. O monstro combinou com Bela que, para voltar, bastaria colocar seu anel sobre a mesa, e magicamente retornaria.

            Bela visitou alegremente sua família, mas as irmãs, ao vê-la feliz, rica e bem vestida, sentiram inveja, e a envolveram para que sua visita fosse se prolongando, na intenção de Fera ficar aborrecida com sua irmã e devorá-la. Bela foi protelando sua volta até ter um sonho em que via Fera morrendo. Arrependida, colocou o anel sobre a mesa e voltou imediatamente, mas encontrou Fera morrendo no jardim, pois essa não se alimentara mais temendo que Bela não retornasse.

Ilustração para a edição de “Beauty and the Beast”, Walter Crane,
Londres: George outledge and Sons, 1874
           Assim, Bela compreendeu que amava a Fera, que não podia mais viver sem ela, e confessou ao monstro sua resolução de aceitar o pedido de casamento. Mal pronunciou essas palavras, a Fera se transformou num lindo príncipe, pois seu amor colocara fim ao encanto que o condenara a viver sob a forma de uma fera até que uma donzela aceitasse se casar com ele. O príncipe casou com Bela e foram felizes para sempre.

            Analisando o conto, observamos que inicialmente, a convivência com a Fera era assustadora para a jovem. Contudo, ao aprender a valorizá-la, respeitá-la e amá-la, esta se transforma num príncipe, e o pai da moça é salvo. Deste modo, a redenção do pai é a transformação da “Fera”, do animus negativo que existe no interior da mulher, em um homem que tem uma boa relação com o feminino. Assim, redimir o pai é, de certo modo, redimir o feminino.

            A redenção do feminino ocorre quando a mulher não é nem submissa ao masculino, nem o imita. Deste modo, a redenção do feminino se dá quando a mulher passa a se valorizar e a viver de maneira espontânea, de acordo com suas necessidades e sentimentos, sendo capaz de dialogar com seu animus, não sendo, portanto, controlada por ele. “(...). Toda mulher tem uma dimensão masculina, geralmente oculta em sua psique inconsciente. Corresponde-lhe, no homem, a presença de um lado feminino que, no mais das vezes, é inconsciente e inacessível.

            A tarefa do crescimento pessoal para cada um é tomar consciência desse lado contrassexual, valorizá-lo e exprimi-lo conscientemente, quando a situação for apropriada. Quando o lado contrassexual é aceito e valorizado, torna-se uma fonte de energia e inspiração, permitindo a união criativa dos princípios masculino e feminino no interior da pessoa, assim como o relacionamento criativo entre homem e mulher.”(LEONARD, 1997, p.55)

            Grande parte dos contos de fada tem um final feliz, simbolizado pelo casamento, que segundo Estés (1994) representa a procura de um novo status, o desdobramento de uma nova camada da psique. Na alquimia a união entre opostos é comumente representada pelo casamento entre figuras masculinas e femininas, o que é denominado de coniunctio. A coniunctio alquímica simboliza uma união transformadora de substancias dessemelhantes.

            A partir dos símbolos alquímicos, Jung vislumbra alegorias do processo de individuação, como explicitado da seguinte citação: “O lado místico da alquimia é, deixando de lado o aspecto histórico, um problema psicológico. Trata-se, ao que parece, do simbolismo concretizado (projetado) do processo de individuação. Este produz ainda hoje símbolos que têm a mais íntima relação com a alquimia. Devo remeter o leitor, no tocante a isso, a meus trabalhos anteriores que tratam dessa questão do ponto de vista psicológico, ilustrando o processo com exemplos práticos.”(JUNG, 2003, p. 107).

Autora: Gabriella Gomes Cortes. Psicóloga graduada pela UFRJ. Pós- graduanda em Psicologia Analítica pelo IBMR. Psicóloga da Prefeitura de Niterói (SMAS)