O impulso de retorno à mãe pode ser visto como um impulso de volta ao inconsciente. Sob certas circunstâncias, isso pode ser regressivo, levando à neurose e à psicose; doença psicológica ou morte. Em outras circunstâncias, ou seja, no processo de individuação, a regressão pode ser temporária e em prol da renovação psicológica e do renascimento simbólico (“recuar para saltar melhor”).
Sobre a regressão e o processo de cura, Jung diz: “Parece que o processo de cura mobiliza essas forças para alcançar os seus objetivos. É que as representações míticas, com seu simbolismo característico, atingem as profundezas da alma humana, os subterrâneos da história, aonde a razão, a vontade e a boa intenção nunca chegam. Isso porque elas também provêm daquelas profundezas e falam uma linguagem, que, na verdade, a razão contemporânea não entende, mas mobilizam e põem a vibrar no íntimo do homem. A regressão que poderia assustar-nos à primeira vista é, portanto, muito mais um “reculer pour mieux sauter”, um concentrar e integrar forças, que no decorrer da evolução vão constituir uma nova ordem.” (Jung, C.G. , 2007, p. 13).
Deste modo, na visão junguiana a função do símbolo é ser um agente curativo que age como ponte para reconciliar os opostos, ou seja, uma tentativa do inconsciente de levar a libido regressiva para um ato criativo, mostrando assim o caminho para a solução do conflito. Assim, Jung nos fala da importância do conhecimento dos símbolos em análise, uma vez que a meta da psicoterapia não se resume a cessão dos sintomas, mas a realização plena das potencialidades a partir do processo de individuação. “[...].
Neste caso o conhecimento dos símbolos é indispensável, pois é nestes que se dá a união de conteúdos consciente e inconsciente. Da união emergem novas situação ou estados de consciência. Designei por isso a união de opostos pelo termo “função transcendente”. A meta de uma psicoterapia que não se contente apenas com a cura dos sintomas é a de conduzir a personalidade a totalidade.” (JUNG, 2006, p. 282)
Bela retorna ao lar transformada, e isso atiça a inveja de suas irmãs. Esse momento do conto representa o confronto com a sombra e aos aspectos regressivos do inconsciente, que dificultam a comunicação do ego com o Self e obstrui o processo de individuação. As irmãs de Bela, ardilosamente, fazem tudo para agradá-la e para que esqueça de retornar ao castelo da Fera. Porém, Bela pressente o chamado da Fera, e ao voltar depara-se com a Fera agonizando de tristeza (operação mortificatio, na alquimia). A partir desse momento, Bela percebe o lado humano da Fera, assim como o sentimento de amor. Desse modo, a heroína tem a vivência da coniunctio, a vivência dos opostos, visto que a Fera não é mais um animal repugnante, mas como um ser humano (pois tem sentimento) que desperta seu amor.
“De acordo com o simbolismo alquímico, a coniunctio é o objetivo do processo; é a entidade, a matéria, a substância que é criada pelo processo alquímico quando ele finalmente obtém sucesso em unir os opostos. É algo misterioso, transcendente, que pode ser expresso por muita imagens simbólicas. [...]” (EDINGER, 2008, p. 21).
Em JUNG (2003), “[...].A operação alquímica consistia essencialmente numa separação da prima matéria do assim chamado caos, no princípio ativo, isto é, a alma, e no princípio passivo, isto é, o corpo, os quais posteriormente se reunificavam sob a forma personificada da “coniunctio”, do “matrimonium chymicum”; em outras palavras a “coniunctio” era vista como uma alegoria do hierosgamos, a união ritual de Sol e Lua. Dessa união nascia o filius sapientiae, o philosophorum: O Mercurius transformado, considerado como hermafrodita, devido à forma esférica de sua completude.”(JUNG, 2003, p. 125)
A partir da vivência dos opostos, o animus animalesco, sombrio, torna-se humano. Assim, o feitiço que condenou o príncipe a viver como Fera é quebrado e este pede Bela em casamento. O casamento é um símbolo muito recorrente nos contos de fadas e mitos que retratam a saga de heroínas. Nos mitologemas do herói há uma cisão entre inconsciente e consciente. O herói mata o monstro, representando essa cisão e, principalmente a construção do ego “herói” que se diferencia do monstro “inconsciente”. Já nos contos de heroína, diferentemente nos de herói, podemos observar que o princípio feminino faz parte do aspecto do inconsciente e, por tanto lida com ele na esfera da relação e não da cisão.
Daí, o casamento ser o símbolo perfeito para retratar a meta final do processo de individuação, da relação entre os opostos, como nos fala Boechat (2008), “O modelo mítico mostra sempre o mitologema do herói que mata o monstro. Este mitologema configura a estruturação da consciência a partir do inconsciente. A morte do monstro simboliza o domínio ou repressão de impulsos instintivos primitivos. Configura-se aqui a oposição instinto-cultura definida por Freud. Entretanto, há mitos de epopéias personificadas por heroínas. Estas normalmente não matam o monstro, mas, ao contrário, casam-se com ele.
O conto de fadas A Bela e a Fera ilustra bem esta situação, também configurada no Mito de Eros e Psique. (...). É provável que a heroína, como mulher, personifique uma possibilidade da tão buscada coniunctio oppositorum alquímica, a união dos opostos, a última e mais difícil das operações, pois representa a união do inconsciente e do consciente, objetivo final do processo de individuação. A heroína estrutura a consciência pois perfaz o ato heróico; ao mesmo tempo, seus valores são do inconsciente, pois pertence ao domínio do feminino, da emoção” (BOECHAT,W., 2008, p. 67-68).
Bibliografia
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Autora: Gabriella Gomes Cortes. Psicóloga graduada pela UFRJ. Pós- graduanda em Psicologia Analítica pelo IBMR. Psicóloga da Prefeitura de Niterói (SMAS)
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