Quíron ensina Aquiles a tocar a lira |
Cronos, um deus de temperamento bastante pacato e fechado, foi um esposo bastante comportado. A seu respeito conhecemos apenas um relato de caso extraconjugal.
Em suas andanças pela Tessália na tentativa de encontrar Zeus, o filho que havia escapado de seu controle, Cronos se encontra com a ninfa Filira, filha da união dos irmãos: o Titã Oceano com a titânia Téthys. Ele se sente imediatamente atraído por ela. Filira, assustada, metamorfoseia-se numa égua, tentando escapar do assédio de Cronos. Ele descobre o disfarce e, assumindo a forma de um cavalo, consegue possui-la. Dessa união nasce Quíron, metade homem, metade animal. Filira, desesperada ante a feiura do filho não quer mais viver. Ela é transformada em uma árvore, a tília. Assim, Quíron é abandonado pelos pais, mas tem a sorte de ser adotado pelo deus Apolo, que além de pai adotivo assume o papel de mentor, conferindo-lhe todo conhecimento e sabedoria a fim de torná-lo gentil, virtuoso, sábio. Quíron se estabelece numa gruta do Monte Pélion, na Tessália, onde funda uma escola, tornando-se um grande mestre e curador. Graças a Apolo, Quíron domina conhecimentos de medicina, magia, astronomia, música, adivinhação, e vem a educar príncipes e heróis como Aquiles, Jasão, Teseu, Odisseu. Foi também ele que ensinou medicina a Asclépio/Esculápio, o pai da medicina. Lutando ao lado de Héracles contra os centauros, Quíron é acidentalmente ferido por uma flecha envenenada do herói. Sua ferida não tinha cura. Sofrendo terríveis dores, pede a Hades que o acolha e, para poder morrer, cede sua imortalidade a Prometeu, livrando este outro herói de seu castigo. Zeus, compadecido, transforma-o na constelação de Sagitário.
Este mito ressalta alguns aspectos interessantes e importantes que me merecem nossa atenção. Inicialmente, o nascimento singular de Quíron. Ele é produto da primeira união que não é diretamente incestuosa. Todos os seus antecessores pelo lado paterno foram concebidos através de união entre mãe e filho ou entre irmã e irmão. Neste caso, Filira era sobrinha de Cronos; portanto, apesar de ainda haver algum parentesco, este já é mais distante. Quíron foi rejeitado pelos pais e concebido quando ambos se encontravam numa forma animal, isto é, a partir de uma união puramente instintual. A ferida dos instintos rejeitados é partilhada por inúmeros indivíduos em nossa sociedade. Quantos de nós não nasceram de pais que reprimiam seu lado instintual e assim foram “educados” a fazê-lo desde tenra idade, por influência da cultura ocidental judaico-cristã e sua forma de pensar? A solidão e o isolamento que advêm dessa combinação de rejeição materna e ausência paterna constituem outro tema da psicologia e compõem o cenário para o roteiro arquetípico do “nascimento de um herói”. As crianças que têm pais desse tipo quase sempre se sentem órfãs e passam a fantasiar que, algum dia, os pais “reais” virão salvá-las. Esse processo parece surgir à medida que se desenvolve o senso de individualidade, aparecendo, sobretudo, como resposta autoprotetora a determinada situação dolorosa. Quando a criança carece de relacionamento afetivo com os pais, sua psique permanece aberta ao reino do imaginário e a formação de seu ego é dificultada ou até mesmo prejudicada. Em termos positivos, da mesma maneira que o fez com Quíron, essa situação pode fomentar em nosso interior um senso precoce de destino e a premência de desenvolver nossa própria individualidade. Negativamente, por outro lado, pode nos compelir a fugir da dor de nossas feridas, mergulhando num “espiritual” onde os instintos ficam suprimidos, com o intuito de manter e preservar um falso sentido de “elevada consciência”. Logicamente, nem é preciso ressaltar aqui que, com o passar do tempo, os instintos virão à tona para restabelecer o equilíbrio perdido, produzindo quase sempre crises, tanto em nível físico quanto mental. Apolo, na ausência de Cronos, assume papel significativo como principal influência masculina sobre o desenvolvimento de Quíron. Apolo era deus da música, da profecia, da poesia e da medicina, bem como modelo de juventude, beleza, sabedoria e justiça. Mas, se por um lado os seus amores foram infelizes, pois Apolo tinha dificuldade em expressar sua capacidade de relacionamento (Eros), por outro, o princípio da razão e da ordem (Logos) estava muito mais desenvolvido nele. A energia arquetípica representada por Apolo é praticamente o oposto da união instintual que deu origem a Quíron. O relacionamento entre ambos, entretanto, vem mais uma vez reforçar o tema da justaposição da instintualidade desenfreada aos fatores controladores da razão e educação. Por conseguinte, apesar de Quíron sobreviver, ele permanece eternamente ferido, separado de seu self instintual que foi humilhado e rejeitado. Torna-se então o mediador dos ideais apolíneos de harmonia, cultura, ordem e criatividade que se estabelecem contra o lado instintual. Esta é a ferida de Quíron que muitos dentre nós partilhamos e que necessita urgentemente de atenção – principalmente se os transtornos causados por essa ferida tornaram-se recorrentes a ponto de podermos, em termos psicológicos, compará-lo à “compulsão da repetição”. A memória de algum sentimento doloroso, depositada no inconsciente, tende a atrair situações no presente que reproduzem os mesmos eventos, reativando consequentemente a antiga ferida. Esses ciclos de repetição ocorrem porque ainda existe alguma ferida que está procurando cicatrizar, ou porque o indivíduo está tentando modificar suas atitudes ou expandir sua consciência. Nesses momentos, a cura é possível; entretanto, se a frequência de repetição for demasiada, o processo pode esmagar o indivíduo, e a ferida pode tornar-se mais profunda ou transformar-se até mesmo em alguma enfermidade séria. Reflitam e meditem sobre isto!
Texto extraído do livro do autor:
“MITOS GREGOS – O INÍCIO... OS DEUSES... OS HERÓIS...”
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